terça-feira, 11 de dezembro de 2007

" Sopro da saudade "




Já por algum tempo eu olhava perplexo para o topo da serra contemplando o vazio. A chuva caía mansamente e cobria todo o vale como se fosse um manto de véu bem fininho que apenas ofusca o que lhe traspassa. Hora levada pelo vento parecia dançar sobre o tempo. Hora caindo bruscamente como se formasse um piquete direto ao chão. Com uma caneca de café cor preta que havia ganhado de aniversário empunhada na mão direita eu simplesmente deixava o tempo passar e observava insosso o crepitar dos pingos da chuva no telhado estilo francês que dava um tom aconchegante ao chalé aquecido por uma lareira simples no meio da sala.
Como som ambiente uma música interpretada por um dos irmãos Venturini, intitulada “Criaturas da noite” lembrava-me com sua letra essa parte negra do girar terrestre. De fato, as criaturas da noite, pouco observadas pelos habitantes embalados pelo sono dos deuses, fazem um balé de um jeito todo diferente e especial de celebrar a escuridão. Como entoava o intérprete, “num vôo calmo e pequeno, procuram luz, aonde secar peso de tanto sereno” absorvido pelos seus corpos noturnos.


De fato, a noite é ímpar. E naquela tarde de verão (ou seria de inverno, por que no hemisfério sul o verão é sempre época de muita chuva e mais se assemelha ao inverno do hemisfério norte onde a neve alva rege o período), eu me preparava para com os olhos dispersos adentrar calmamente no crepúsculo ausente de plenilúnio, e abundante em densas névoas e nuvens negras, arautos de um tempo pesado e inclemente. Amiúde este tempo nos torna amuados e melancólicos, esvairados e com uma sensação indelével de impotência diante da natureza, como se esta comandasse mesmo os nossos destinos e como se dela dependesse nossa beatitude ou gozo infernal.
De qualquer forma, era nessa sensação que eu me achava nesta tarde de garoa fina. O café forte esfriara e era hora de abastecer novamente minha caneca com este líquido estimulante e deleitoso para os solitários. Diria até que o café é uma bebida companheira.
Fui até a copa, e pela primeira vez senti uma sensação de vazio intermitente quando ao fundo, bem próximo do quadro de minha mama, estava a garrafa de café, solitária e triste, como se também quisesse me passar essa referência, afinal, hoje é uma tarde de domingo, quando nada mais temos a fazer a não ser contemplar o inexistente, e ainda mais com uma chuva fina ao relento.
“Noves fora, nada” quero prosseguir minha ortoépia apontando a seta para esta tarde, bucólica, sobretudo excessivamente nostálgica em que me encontro mormente a apreciar o cair da tarde ao som da família Venturini tendo como pano de fundo as gotículas da chuva encenando com seu mudar rápido e desordenado de direção o que mais se assemelhava a uma dança flamenca com passos exímios, repisados e reprisados, como se fossem páginas da epopéia da vida. Vida minha.
É neste cenário que me reporto aos dias de luz ou da falta dela. Aos tempos de breu e as horas resplandecentes da saga humana. Aos dias em que o sol brilhou mais forte, através dos acontecimentos, ou que a tempestade revelou-se pelo mesmo motivo. Só em dias assim, como este, de chuva miudinha e persistente, pode-se refletir nas páginas amarelas do pretérito “odisséico” de nossa vida.
Todavia, o café esfriou novamente. O amargo com que o bebi quando incandescente tornou-se agora insípido. É hora de recarregar a caneca de novo. A mesma caneca preta que me acompanha por longos 30 anos. Não sei quem é mais companheiro, se a caneca ou o café. Talvez sejam eles os grandes confidentes. Os únicos em que confio.
Viro-me novamente em direção à copa. Mas desta vez parei em ato de reflexão. Por alguns eternos segundos, decido que não é mais tempo de olhar a chuva. Ela já disse-me o que queria. Eu já vi o filme sobreposto na tela do tempo e da vida. Está faltando somente o epílogo, e sobre este não tenho controle. Por isso, volto-me para a maçaneta e fecho o vidro. Manejo a persiana como se fosse terminar o espetáculo e descer o pano sobre o palco.
Não quero mais o café. Por hoje ele está dispensado. De fato, por hoje não quero mais pensar em nada.
Deixe que o tempo siga seu curso e a vida tome seu rumo. Por ela própria. Sem forçação. Apenas antevejo que a felicidade não tem dono e é assim, como uns caquinhos de cerâmica. Precisamos juntá-los ponto por ponto para descobrir o todo e costurar a ferida aberta entre o real e o imaginário, entre a alegria e a desfalência, a sangria e o nó atado. A forceja e o milagre do existir.
Agora, estou só, sentado na poltrona grande em frente a lareira. Sinto apenas o aquecer das labaredas, que no frio intenso vão me adormecendo e deixando me levar pelos sonhos que moverão o meu seguir. Lento... Lento... Lento... Vento... Tempo... e alento...
Zzzzzzzz...