sábado, 24 de março de 2007

JORGE E LENE

Jorge Era um eterno boêmio. Sempre viveu toda a vida atravancado com a bebida destilada e quente, e enlaçado pelas mulheres da rua Bonfim. Seu maior prazer era o prazer que as damas das camélias pudessem proporcionar, aliado a uma boa dose de conhaque misturado a uma cajibrina das mais “...dentes” da região ou dos fundos de quintais, produzidas na época.
Lene era uma mulher da roça. Ou da zona rural, como insistiam em dizer antigamente os próprios habitantes que não faziam parte do perímetro urbano das cidades, como se fosse uma humilhação admitir ter as raízes enfincadas no chão, assim como a manaíba desce com as suas para beber água no mais recôndito do subsolo. Humilhação mesmo é não ter origem.
Mas, preconceitos à parte, era daquele torrão que Lene surgiu. Morava lá pelas bandas de Coração de Jesus. Mulher difícil, era verdade. Tinha o “topete” enpinado como costumava dizer meu saudoso pai ao se referir a alguém de personalidade forte.
Jorge passou por várias mulheres em sua vida. Um casamento mal sucedido e ainda passou pela entrega completa ao álcool. Foi ao fundo do poço. Foi e ficou. Estava atolado, ou quase afogado, na maldita. E isso não poderia passar sem um tributo. Adoeceu, se recuperou, adoeceu, se recuperou de novo. E vivia assim, entre a doença e a quase doença. Entre a cirrose e a quase morte de um ser humano seduzido pelo líquido destilado e quente das prateleiras dos empórios nas esquinas esvoaçantes das noites eternas.
Mas Jorge teve berço. Filho de pai militar, teve a oportunidade de freqüentar um colégio militar assim como seus irmãos. Todavia, diferentes dos demais da família, não quis concluir os estudos. Preferiu a alegria e a companhia dos habitantes da infame noite, senhora de todos os nela perdidos.
Lene não teve a mesma sorte. Nem ler sabia. Apenas diante de si a falta de oportunidade que a vida lhe propôs. Vida dura, muitos filhos para criar e a sensação terrível de que o futuro parecia cada vez mais tenebroso. Sombrio.
Não sei ao certo onde Jorge conheceu Lene, ou nem mesmo sei se foi Lene quem quis conhecer Jorge. Certo é que suas vidas se cruzaram e seus destinos se encontraram em algum momento na perceja dura que a vida impõe.
Naquele exato momento, me imponho arriscar supor o que se passou na cabeça de cada um. Para Jorge, Lene era apenas mais uma aventura? Talvez. E para Lene, Jorge talvez fosse a perspectiva do fim de uma vida dura de sofrimento. Afinal de contas, apesar de totalmente entregue a difícil doença do alcoolismo, Jorge tinha casa, e tinha uma família estruturada. Olhando por este prisma, Lene sonhou... planejou... iludiu.
Atenho apenas a dizer que Jorge e Lene ficaram juntos. Jorge continuou entregue aos rompantes que a bebida faz acontecer. Adoeceu, maculou, cambaleou ante ao veneno da serpente espreitado no último gole ou no próximo copo de cachaça. Lene ao seu lado esteve. Acudiu, aparou e amparou.
Lene não era um exemplo de mulher. A vida não proporcionou isso a ela. Mas amava, direito este dado ao ser humano no momento de sua visão da luz. No berço, no seu nascimento. Esse direito ninguém pode nos tirar. E Lene amava Jorge. Do seu jeito parrudo de amar. Mas amava. Incontestavelmente.
Jorge esteve à beira da morte. A bebida cobrou seu preço. Esteve perto de não mais enxergar a luz. Nessa hora, a que chegamos a conclusão de que não sairemos vivos do fundo do poço, sim, nessa hora crucial, eu sou testemunha ocular de Lene estava lá, sempre ao lado do seu homem. Seu companheiro ou simplesmente seu passaporte para sair do submundo em que vivia.
Bem, tanto foi feito que Jorge escapou da morte, saiu da lama. Viu a luz. Largou a bebida. Refez sua vida. Comprou carro, melhorou a casa. Foi homem de novo. Depois de viver anos sendo um nada, um peso morto na vida dos outros. Lene, com toda a sua rusteza, foi-lhe uma âncora, uma muleta, uma escada. E apoiou-lhe nas horas cruciais da vida, até mesmo nas horas cruciais da morte, quando esta rondou-lhe o leito sujo em que dormia.
Finalmente saiu do fundo do poço.
Depois de voltar a ser homem de novo, Jorge abriu os olhos para o mundo. O tempo passou e ele percebeu que Lene era uma mulher mais velha, cansada e exausta de brigar com a vida. Queria paz e um cantinho pra recostar a cabeça.
Jorge queria guerra, e sangue novo para alimentar a vaidade humana. Partiu à cata de algo “melhor”. E encontrou algo mais novo, menos cansado e mais atrevido. Apenas esqueceu-se de dizer à Lene que ela não fazia mais parte da vida e dos planos dele. Que já não tinham mais sonhos em comum. Esqueceu-se até da própria casa e dos próprios filhos, porque quando partiu, não anunciou nem que voltaria pra jantar a comida que Lene preparava todas as noites pra ele. A comida ficou lá, no prato, esperando que Jorge entrasse pela porta e a reclamasse, a quisesse.
Lene esperou, mas Jorge não voltou. A comida azedou. Ao contrário do que esperava, Lene apenas percebeu que a cada dia Jorge só apanhava o pouco que lhe restava de suas roupas e ia alimentar a febre do corpo que o corrompia. Queria sangue novo, e estava conseguindo, como um vampiro sugando o sangue de sua pobre vítima na noite feroz.
Diante disso, Lene viu seu futuro cair. Já não havia mais alimento no armário. Já não havia mais café na mesa, carne no prato ou dinheiro pra comida.
Mesmo assim, ela forcejou pelo seu amor. Brigou, porfiou, esbravejou, rezou, suplicou, “...Até ao preto velho pediu proteção, mas de nada adiantou...”, como nos faz lembrar a letra de uma velha canção da década de 70.
Vendo resvalar pelos dedos suas esperanças, Lene parou. Desistiu. Não de Jorge, mas da vida. De lutar pela esperança. Para ela, já não fazia mais sentido viver.
Depois de sua dedicação, era essa sua recompensa. E este golpe final, por fim atingiu seu coração insalubre. Este já não batia no mesmo compasso do seu companheiro. E na sua batida desritmada, arrastou também seu corpo, que passou a definhar-se a cada entardecer. A cada pôr-de-sol ela sentia-se menos gente, menos viva, menos alma.
Jorge foi-se, e com ele carregou as únicas forças que ainda restavam à pobre.
Assim, com o passar dos dias, Lene não quis mais a vida. Por mais que lhe implorassem os amigos, por mais que dissessem, ou suplicassem, ela simplesmente não ouvia. Estava sendo consumida pelo seu amor. Seus olhos estavam focalizados apenas numa única direção: o vazio! Era surda e muda, corroída pelo próprio sentimento, misturado à impotência e a inutilidade da vida.
E, um dia, arrasada pela doença, pelo desgosto e pela desilusão, Lene morreu. Assim, sem dar muita explicação. Me arrisco a dizer que apenas fechou os olhos e deixou seu coração parar. Por que morta, ela já se sentia a muito tempo.
Morreu por amar... morreu de amor... o sentimento nobre que deveria dar vida e força a todo ser humano. Foi este o algoz do coração da pobre alma que um dia sonhou que poderia ser gente e que poderia ser até mesmo feliz.
Quanto à Jorge, nunca mais voltou. Ainda continua por aí, ninguém sabe onde anda, ou andará. Ainda suga o sangue novo que encontrou. Até quando não se pode prever.
A única coisa que podemos imaginar é que um dia há de encontrar-se consigo mesmo, com o seu guardião da mente, e ainda há de perguntar-se por que em algum momento de sua vida, ele simplesmente não voltou apenas para se despedir daquela que na sua sapiência rude o empurrou para cima, e com esse gesto nobre, desceu aos infernos pela última vez.
Dizem as más línguas das senhoras inconstantes que em noites de lua cheia, Lene ainda está lá, sentada na porta de sua casa, esperando que Jorge volte para jantar aquele último prato que ela lhe preparou e para assim dar-lhe seu último adeus, pois nem mesmo isso a vida permitiu à reles ter. Nem mesmo a despedida do seu amor mais recôndito.
A Odisséia da vida é mesmo assim. Amor e sofrimento andam de braços entrincheirados. Ave, àqueles que amam e morrem pelo amor. Sem pedir pagamento, pois fácil é amar quem nos ama. Difícil mesmo é morrer de amor por quem nos odeia. Viva Cristo!

5 comentários:

Anônimo disse...

Perfeito! Bravo! Isso que posso dizer deste texto.Um dos mais bem feitos, se não o maior, o gran, o "supreme". Sem erros, perfeito! Digno de sua inteligência. E de uma profundidade, meu caro, das mais mais que posso encontrar e atribuir. O que mais achei interessante foi o início, meio e fim. Nossa! Parabéns, Nairlan, é só que posso escrever. Parabéns, a sua escrita desta vez superou a qualquer coisa que eu possa dizer, ou digitar. parabéns, parabéns, parabéns!

P.S: Só esse lay-out que tá meio piegas.hehehehehehe. pra nao perder o costume.

Anônimo disse...

Nai, se falei q o texto passado estava profundo, digo o mesmo p/ este. Vc anda muito sentimental ultimamente. Um pouco, superticioso tbm!

Anônimo disse...

Realmente, um texto muito profundo esse que vc escreveu. Redigiu muito bem com uma concordância impressionante. A estória realmente bateu fundo fazendo com que a gente reflita sobre a ingratidão das pessoas aquelas que mais fizeram por elas. Certamente a consciência de Jorge um dia vai calar fundo. Essa é a esperança que o texto quis trazer à tona. Percebo isso na leitura. Sendo assim, só posso dar parabéns pelo texto. Extremamente bem elaborado.

Anônimo disse...

Meu caríssimo, é a primeira vez q estou tendo oportunidade de entrar no seu blog. A surpresa foi realmente grata. A analogia de Jorge e Lene é profunda. Muitos de nós já devemos ter visto sem sombra de dúvida algum Jorge ou Lene próximo de nossa vida. Parabéns! Sugiro escrever um livro posteriormente. Um grande abraço do seu amigo.

Anônimo disse...

"Parabéns pelo belo conto. Você nos conduz, com maestria, pelos meandros da natureza humana, desnudando sentimentos recônditos e insondáveis, que afloram no seu texto de Português escorreito.
Voltarei mais vezes ao seu blog, para beber dessa fonte cristalina e murmurejante."