quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Palavras que alimentam a vontade (ou a verdade)


Foi boa esta última tarde. Foi proveitosa. No céu eu sentia que a chuva parecia querer dar o ar da graça. Mas ela só quis. Não veio. O tempo estava mesmo colaborando conosco. Queria fazer uma gentileza. E assim fomos fazendo aquilo de que mais gosto. Conversávamos. E foi bom ouvir algumas coisas que você tinha a dizer. Essa nossa conversa também revelou que eu não era enfim tão gente como você achava. Acho que demonstrei até meu lado meio bicho. Pitoresco até. Mas de qualquer maneira, a tarde foi assim cheia de muita conversa. E isso é que deixou tudo melhor. O sol as vezes nos assistia. Acho até que nos observava de verdade, com olhos e tudo. Mas qual nada. Tímido, recuava e escondido, nos deixava em paz. A sombra debaixo da árvore na porta da sua casa nos protegia e nos enchia de vigor. E enquanto isso, nós falávamos... de tudo. E sorríamos... e íamos nos estudando. Realmente, como há muitos anos não acontecia. Eu gostei. E você, será que gostou? Será que apreciou a companhia de um homem velho, cheio de excentricidades e esquisitices que a idade e os cabelos brancos impõem?Mas o tão importante nesta tarde no fim do verão é que nós conversamos. Até termos mais vontade de conversar. O tempo passou, os compromissos ficaram para depois, mas a nossa conversa percejou. A nossa prosódia soergueu e aludiu. Esparramou. Fizemos calo na boca, de tantas palavras balbuciadas. Nos esquecemos que afinal éramos um homem e uma mulher cheios de vigor, de objetivos e esperança. De aspirações também. E estávamos ali, defronte a rua e prontos para o mundo. E de frente um para o outro. Você com um rosto infantil que a vida lhe propôs ter, e eu, com a experiência que a vida acresceu-me ao longo dos anos. Eu acho que fui contagiado pela sua juventude, e de certa forma te deixei um pouco mais velha no fim de tudo. Foi uma troca, você me deu força, e eu te dei sabedoria. Mas nos esquecemos que as pessoas passavam, tamanha era a nossa avidez pelo nosso embate falante. Elas íam e vinham para os afazeres da vida e nós permanecíamos ali como se nada acontecesse, como se o mundo não existisse ou como se ele fosse só nosso. Atuávamos como donos do próprio mundo. Quiçá do universo, quem sabe. Afinal, aquela conversa revelou que podíamos tudo. Que bom! Falamos de tudo um pouco. Do mundo, dos livros, de festas, de alegrias, de choro, da maldade na língua das pessoas, do carnaval, dos amores esquecidos, do amor atual, e da necessidade de ser razão e coração ao mesmo tempo.Cheguei a conclusão de que esta tarde foi preparada. Desenhada. Feita na medida para que soubéssemos um do outro. E soubemos. Que bom! Pelo menos soubemos. Era isso que importava. Novamente, que bom! Talvez desta tarde surja alguma coisa. Não se sabe ainda o quê! Mas pra quê saber? O que interessa mesmo é que houve uma tarde. Houve fala. Houve mesmo conversa. Houve um momento entre nós. E isso já é o bastante pra deixarmos as coisas seguirem seu curso natural. Não sei onde vai dar, mas será em algum lugar. Talvez surja alguma coisa no horizonte, mas caso não surja, esta tarde proporcionou sim uma grande descoberta para nós. Já valeu. Por isso, será elegantemente intitulada e imortalizada como Tarde dos Sonhos. Será assim... e será para sempre.Que bom!

Nada talvez seja tudo


E um vazio insiste em tomar conta. Por mais que eu saiba o que é correto, a saudade grita mais alto. É mais forte. O vazio talvez seja o resultado da ausência do teu espírito em mim. É um vazio pesado. É maior e é tamanho que não existe dimensão para defini-lo.É um oco. Um vão. É só. Solidão.A definição de sua ausência é a tristeza reinante. A agonia que toma conta de um ser afetado pelo modo insípido de encarar a vida.O dia foi insípido. Arrastou como se não passasse. Como se não quisesse chegar ao fim. Teimou em não acabar. E você teimou em não passar junto com ele. E não passou. Na mente. Na cabeça. Nos cabelos. Desgrenhados. Não os penteei. Não quis. Eles representam o protesto. A linguagem do meu lamento por ti. Pela sua inexistência. Ausência. Ou simplesmente... sua partida do meu diário vivo.Sim. Ter você está cada vez mais distante. Ao menos sua companhia tem se tornado um risco diário. Um perigo rondando a porta. Sendo assim, é melhor prosseguir no mar da vida como uma nau sem rumo. Sem o seu corpo presente. Pois que seja sem você. Sua companhia é sinônimo de sofreguidão. De insegurança e ao mesmo tempo de lamúria.É hora de reconhecer o fracasso.Já não é mais dia. É noite. Enfim, foi o próprio dia que me arrastou até aqui. Apenas para chegar a exaustiva conclusão de que a disputa teve um fim. Ela foi vencida pelos meus inimigos, meus rivais ou simplesmente meus companheiros de luta. Não sei. Sei que meus ombros pesaram. Como se eu carregasse um piano. Estou cansado. De correr para você e ao mesmo tempo ver que você já não existe. Já não ocupa o mesmo lugar. Não é mais onisciente em minha vida.Deitei-me. Rezei. Fechei meus olhos e como num aceno, dei meu ultimo adeus à sua sombra. É hora de dormir e deixá-la do lado de fora dos meus sonhos. E ao mesmo tempo em que sonhar, vou acordar sentindo que estou dormindo no vazio das suas lembranças.Boa noite. Dorme bem. Fica bem.Eu velo por ti.Talvez em qualquer lugar, possamos um dia reencontrar o elo perdido. A fagulha que faltava. Para só assim descobrirmos o prazer que a felicidade dá aos amados e amantes quando a entrega é ambígua.Amém.

A trilha dos trilhos dos sonhos


Uma brisa matinal passeava lentamente sobre o lago azul celeste que havia atrás da casa de adobe próximo a estaçãozinha de Pires. Era uma casa abandonada. Não tinha sido assim no passado. Um dia aquilo tudo ali já tinha sido movimentado. Em algum tempo um borbulhar de pessoas trançavam aqueles trilhos de um lado para outro como se fosse um ninho de formigas. Homens trabalhando, mulheres falando da vida alheia e crianças recostadas nas muretas das casas brincavam de pique-esconde ou de porta bandeira. Tudo ali fervia de vida e de poder de espírito. Mas hoje, estávamos diante de uma velha casa recostada com dormentes podres em suas paredes tentando deixar existir o que parecia querer avidamente desaparecer. Mas, olhando copiosamente a centenária construída de barro e cal, nós refletíamos saudosamente e seguíamos em frente no balanço e nos solavancos dos vagões. Como se fosse um compasso de música aquele balançar parecia nos ninar naquela tarde gostosa de setembro. E olhávamos bem atentos à locomotiva lá na frente fazendo a curva primeiro do que o compartimento onde estávamos. A música tocava, o trem serpenteava e os desencontros dos vagões soava como uma valsa profunda que nos confundia e fazia-nos chorar, sorrir e pular de alegria ao mesmo tempo. O sol dava o ar da graça naquele crepúsculo e assim lançava seus raios fazendo o céu ter uma face multicor. Um misto de azul e vermelho com um amarelo refletido bem ao centro, por baixo, como se fosse um colchão d`água recostado na colina verde que refletia a sombra das densas nuvens no fim do dia.E assim íamos nós de encontro à nossa juventude. O barulho permanecia como música nos ouvidos. Lá bem ao longe alguns bois pastavam intactos, incólumes, intocáveis. Pareciam estátuas brancas do tempo. Fixos. Imóveis. Só se fizéssemos muito esforço a nossa visão conseguia captar um imponente garrote de chifres pontiagudos abanando o grosso rabo para se livrar de alguma mosca que o incomodava no lombo. Mas tinha que se cerrar demais os olhos para enxergar isso. E nós não queríamos enxergar nada que não fosse o vulto da nossa meninice.Era assim...O balanço seguia...Te-dé, te-dé, te-dé!!!Foooooooooooooooommmmmmmmmmmm!!!!Nossa!!!! A locomotiva buzinou como se estivesse dando um grito de desespero na frente.Será que havia passado por cima de algum animal distraído no meio dos trilhos? Isso era comum nos tempos de criança. Agora, queríamos ser de novo como na época das travessuras. Alvoroçamos como guris inquietos e curiosos. Mas, qual nada, era só um bando de reses que haviam se descambado desfiladeiro abaixo perto da ponte sobre o riachinho, amedrontadas ao serem perseguidas pela serpente gigante com cabeça vermelha que se avizinhava em cima das duas linhas pretas e metal-brilhantes que haviam se estabelecido na “ruralidade”.E o balanço seguia.Junto àquele balanço a cabeça agora emaranhava minha vida.Lembranças tênues enchiam a massa que cobria o invólucro osseóide que me pertencia, e que preenchia meu ser. Naquelas recordações, imagens do meu pai vieram . Sua sombra estava como que ali caminhando ao meu lado. Na verdade, era mesmo do lado do trem. Andando, bem devagar e com a cabeça bem erguida, olhando o horizonte, como era seu costume fazer. Um das mãos na cintura, e a outra apontando a serra verde bem depois do campo de flores na frente do curral. O dorso nu, e uma camisa de flanela jogada nos ombros, reclamando o calor abrasador que o astro-rei lançava na atmosfera parda. Sim....ali estava ele, como se quisesse dizer que aquele campo era o mais belo dos campos que já vira. Era como se eu o ouvisse dizer que ao alcançar sua velhice queria viver num lugar assim, bem defronte ao lago. Ele havia repetido isso muitas vezes na sua trajetória.É!!! Era ele, eu podia quase ver. Eu podia praticamente enxergar seus dois metros de altura e sua silhueta imponente adquirida desde os tempos em que era um exímio jogador de futebol. Ele acenava, e se despedia como se fosse viajando também pelo tempo. Eu estava mesmo vendo. E assim como a lembrança veio, assim se foi. Era como se caminhasse bem devagarinho em direção ao nada. Desapareceu, ao embrenhar-se com as nuvens e com o horizonte que passava, que caminhava de encontro ao nosso andante.E o trem seguia.A cidade já mostrava seus contornos. Alguns casebres já se aventuravam em aparecer, como se timidamente quisessem nos dar boas vindas. Afinal, estávamos chegando. A locomotiva diminuía seu compasso. A música chegava ao término. Ficava mais lenta.Tudo ficava mais triste. Os amontoados de residências e pessoas no crescente nos avisavam que o passado tinha ficado pra trás. Agora era mesmo passado. Só lembrança. Mas que bom, que ótimo que existia em nós um passado, um presente e quem sabe, um futuro.Acabou-se a música, acabou-se a viagem.Mas não acabou a esperança. E a vontade de dar prosseguimento a alma que estranhamente insiste em ir adiante, como se o futuro fosse eterno, e como se as pessoas que fazem parte da história jamais morressem. O trem parou. Era Montes Claros. Chegamos. Acabou-se a odisséia.Descemos. Agora era hora de voltar ao mundo, à realidade grotesca, feita de carne e osso, mas com mais osso que carne. Foi-se embora o trem. Levou nossa vida. Levou o passado. Levou a memória. Levou as lembranças. Levou o horizonte. Levou a nostalgia. Levou a música.Mas nos deixou alegres, com a alma revigorada e pronta pra mostrar ao mundo que ainda somos gente, existimos. E que temos o que contar aos nosso filhos e aos nossos netos.Adeus, trenzinho! Leva tudo mesmo. Mas não esquece de, com o som do seu apito e seu serpentear pelos trilhos, avisar a quem atravessar o seu destino que a vida não é só isso. Ela é muito mais, porque permite a cada ser humano sonhar.E é de sonhos que se constrói o mundo. É de sonhos que vivemos lembrando o passado, e é de sonhos que levantaremos as paredes do futuro.Adeus meu trenzinho! À Deus, trenzinho!...

Traquinagens de Moleque-1

Era com ansiedade que eu olhava para o
fim da rua. Afinal, A mãe ia dobrar a esquina e eu estaria livre pra chamar o
Léo. A Juju ia ficar a tarde toda na casa de Liane, e o Mel, esse não tava nem
aí pra mim. Só queria saber de escutar música com Aline a tarde
inteira.Pronto...um, dois e...zás!!! A mãe virou....Iupiiiiii... Agora eu já
estava pronto. Corri como um louco pra dentro de casa, atravessei o portão e fui
surpreendido pela Chitara. Ela veio com toda força e colocou suas patas
dianteiras bem em cima de mim. Nossa!!! Ela de pé era maior que eu. Como era
linda, assim em pé. Pêlinho alvo e bem baixinho. Ah...a mãe não deixava ela sem
tomar banho toda semana...tratamento vip! E era remédio pra carrapato, e era
vermicida, e era shampoo pra caspas... Às vezes tinha a impressão de que ela era
mas bem cuidada que eu. Xiiii...me distrai, tinha que ir chamar logo o Léo,
afinal, nosso tempo era curto. A mãe logo estaria de volta.Deixei Chitara vir
correndo atrás de mim, e de um salto, subi no tanque e debrucei no muro. A
música que o Mel tava ouvindo de dentro do quarto estava me atrapalhando chamar
o Léo. Mas mesmo assim, insisti!- Léeeeooo!!! Onde está você?Nada!!! Ninguém
tinha ouvido nada... resolvi arriscar mais um pouco e ficar de ponta de pé no
tanque, com o pescoço quase alcançando a mureta que separava nossa casa.
Insisti.- Léooo???.. Mas gente, o som que vinha de dentro de casa estava muito
alto. Desci do tanque e Chitara já estava pronta pra correr atrás de mim de
novo...ai meu Deus! Como era difícil me desvencilhar daquele animalzinho
implicante. Mas, depois de levar duas quedas por ficar trançado com ela, me
recuperei, abri o portão e ganhei a rua...Pronto, ia agora diretinho na casa do
Léo, e agora podíamos aproveitar aquela tarde antes da mãe chegar das compras.
Agora dava pra ele me ouvir. Num pulo, ganhei a rua...agora sim...ihhhh!!!!
Esqueci de fechar o portão. A Chitara veio atrás de mim. Ai meu Deus! Tenho que
colocar essa cachorra pra dentro. Ela não é bravia, mas causa medo. Um cão fila
sempre causa medo em outros pelo tamanho e pelo latido. Mas, quando me voltei,
não percebi que distraído e ao mesmo tempo preocupado com o dia de trabalho que
se aproximava de sua metade, afinal, eram apenas duas da tarde, vinha um
bicicleteiro, é, isso mesmo, um bicicleteiro, como meu pai costumava chamá-los.
Ele só se deu conta de que estava diante da Chitara a menos de um metro dela.
Zás!!!! Ele conseguiu sair fora da cadela que a mamãe cuidava com tanto carinho.
Mas, nesse desespero de sair fora, me achou pelo caminho. Ai meu Deus! Quem viu
aquele episódio deve ter ficado muito assustado. Nos embolamos no meio da rua,
eu, o bicicleteiro e a Chitara. Ninguém sabia quem era quem. Estávamos
entrelaçados, os três.O bicicleteiro levantou assustado.- Que é isso, guri! Tá
louco! E tira essa cachorra de cima de mim!Bem que eu tentei, mas meu braço não
obedecia, e pior...doía!!! Ai, como doía!!!Nessas alturas, a rua ficou
abarrotada de gente. Vizinhos e curiosos corriam pra saber o motivo do estrondo
que tinham ouvido. Isso é comum e normal de acontecer. Um amontoado de gente em
volta de um pobre coitado acidentado. Eu só não tinha me dado conta de que o
pobre coitado, neste caso, era eu. Dona Geni, veio correndo da casa dela,
esbravejando como era de costume.- Tito! Tito! Meu filho, o que aconteceu?...Eu
não sabia, só sabia que sentia muita dor.Seu Arquilino da venda, também largou
tudo e veio me socorrer.- O Braço dele está roxo, olha aí dona Geni.Pronto, Foi
o suficiente pra eu perceber que havia algo de errado.A este ponto do
acontecido, alguém já havia ligado pro meu pai e ele estava chegando. Segundo
fiquei sabendo depois, a minha mãe nem mesmo chegou a ir até as compras. Meu pai
a encontrou no caminho e colocou logo dentro do carro pra voltarem. Eu não
estava entendendo muito bem. Só sabia de uma coisa. Cada hora que passava meu
braço doía cada vez mais e parecia não caber mais na camiseta amarela que eu
usava, agora toda suja de poeira.O bicicleteiro ligava no orelhão para a sua
firma.Os garotos da rua de baixo já estavam todos amontoados em cima de mim, e
dona Geni gritava...- Saiam de cima, seus moleques arruaceiros. Tragam um copo
d’água pra ele! Toma meu filho. Levanta!Dona Geni simulou pegar o meu braço.
Nossa!!! Agora doeu, doeu de verdade. E a máxima do meu pai de que homem não
chora desta vez não valeu. Eu não consegui. Por mais que tentasse, não havia
jeito. A dor era mais forte do que o homenzinho que eu achava que era.Bem. com
todo esse alvoroço, quem se aproximou de mim foi o Léo. E me disse, até meio
preocupado...- E aí, "cajaca" ( esse era meu apelido ) o que tá havendo?- Não
sei, "cabeça", acho que machuquei o braço. O bicicleteiro me pegou quando fui te
chamar na sua casa. Te chamei pelo muro mas você não ouviu. O Mel tava ouvindo
som muito alto.Nossa!!! Naquele instante percebi que o Mel estava dentro de
casa, era melhor chamá-lo. Pedi a Dona Geni que o chamasse. Ela atendeu
prontamente, mas saiu resmungando:- Diacho de menino mais distraído, o irmão
quebrou o braço e ele, ouvindo música. Xiiii!!! O que era quebrar o braço? Mas
meu braço estava no lugar. Por que ele estaria quebrado? O Mel chegou, meio sem
jeito. Acho que Dona Geni deve ter falado umas palavras meio amargas.- Que foi
isso, Tito! Pelo amor de Deus, a mãe disse que era pra eu olhar você. E agora o
que vou dizer pra ela? Aline saiu logo atrás meio sem graça. O pai encostou com
o carro e a mãe chegou junto com ele. Ela olhou pro Mel mas não disse nada. Ela
era assim, não fazia escândalo. Ia acertar as contas mais tarde com ele. O Pai
me apanhou com muito jeito.- Guri Valente, esse meu rapaz! Agüenta até a dor de
um braço quebrado!Ahhhhh! Como era bom ouvir o velho falando isso pra mim. Me
senti um homenzinho de novo. Até parei de chorar.O pai me colocou no carro,
enquanto a mãe trazia uma roupinha pra mim. O Mel veio tentando ajudar com um
sorriso amarelo no rosto, mas a mãe ralhou com ele.- Olhe a casa, Melquisedeque,
se não pode olhar nem o Francisco, se preste ao menos a olhar a casa enquanto o
levamos ao pronto socorro.Coitado do Mel, tudo que ele não gostava era de ser
chamado de Melquisedeque. sei que ele ia ficar muito chateado com tudo isso.
Então resolvi ajudar.- Pode deixar Mel, eu vou voltar são e salvo, assim você
não se sente assim desse jeito.- Qual é, maninho, vai mesmo. Eu fico esperando
você. Vou fazer logo aquela vitamina de banana que sei que gosta. Tomaremos
juntos assistindo ao Jaspion na TV, tá?Fomos pro hospital. Acenei um tchauzinho
com o outro braço para o Léo que me olhava atentamente do outro lado do vidro do
carro e me acenou como quem quisesse desejar boa sorte.Vi meu pai conversando
com o bicicleteiro. Ele agora ia embora com sua bicicleta com os raios
empenados, a roda murcha como uma flor fora do vaso, e o guidão torto de dar dó.
Ele ia levando sozinho essa bicicleta pela rua e ainda disse algo parecido assim
quando passamos por ele, acho que consegui ler nos lábios: “ Calma Guri! Tu és
um garotinho muito valente!”...Eu fiquei com dó do bicicleteiro.Dona Geni
colocava a mão sobre a boca e seu Arquilino caminhava tranqüilamente pra
Mercearia da esquina. O Mel levou a Chitara pra dentro de casa.Tudo parecia
voltar ao normal.Só aquela dor que não passava.Mal sabia eu, que por conta do
que hoje sei ser uma traquinagem de criança, ia ficar quase um mês com um gesso
branco no meu braço e sem poder fazer o que eu mais gostava: traquinagem de
criança...

" Ser mineiro é não dizer o que faz, nem o que vai fazer. É fingir que não sabe aquilo que sabe. É falar pouco e escutar muito. " - Guimarães Rosa

Encontro Marcado

...A paisagem passava, rapidamente, e a estrada seguia como se não quisesse ser alcançada pelo Aero-willis cor verde metalico que eu conduzia. Era tardezinha de outono, daquelas que se fecham com um crepusculo em tom pastel, como que dando um ar de tristeza ao fim do dia. Havia brisa. Fininha, pequena, mas havia. A medida que a ponte se aproximava, meu coraçao palpitava descompassadamente. Afinal, era depois daquela ponte esbranquiçada, que mais parecia uma serpente em ponto de ataque, que meu destino estava espreitado. O desespero era fato. As pupilas dos olhos estavam dilatadas, ora pela atençao na estrada, ora por querer chegar antes de mim ao meu destino. E abriam-se como se quisessem enxergar o que havia depois da curva. No volante do carro já escorria um suor de minhas maos em quantidade tal que, vez em quando era necessario abrir o porta-luvas de alumino prata com desenhos goticos daquele modelo anos 60. Para ser preciso, ele era ano 66, comprado por meu pai de um senhor que havia sido seu único dono, e que, por desgosto da esposa, tinha decidido desfazer-se daquele belo exemplar com pneus de faixa branca e farois amarelados. Lindo! E Imponente! Era do porta-luvas daquele veiculo, agora conduzido por mim, depois de aprender a guia-lo as escondidas, que eu apanhava uma flanela de algodao já reservada para estas ocasioes de extrema ansiosidade. E como não podia largar o volante branco com buzina em aluminio, eu esfregava o pano vermelho em minhas maos, antes que elas escorregassem e por fim, como num corte bruto na pelicula de um filme, meu desejo fosse rasgado antes do apice, antes do epilogo esperado.Enquanto tudo isso acontecia, simultaneamente, a ponte acabava. Eram uns 130 metros de vao, mas que na verdade, pareciam estender-se por quilometros a minha frente. Na mente, eu esconjurava as muretas em falsete do viaduto branco, ou da serpente venenosa, como havia assumido a forma pra mim. Parecia uma pugna entre minhas maos e ela. Eu segurava firme. Nem sei onde pus a flanela que limpava a mao. Os olhos permaneciam fixos, na direçao. Não podia vacilar justo agora. Estava quase chegando.Estava de pé embaixo, acelerando. Diante de algum imprevisto, aliviei. Recobrei a consciencia e o juizo. Enfim, tinha matado a serpente. Ela não saltou em cima de mim num bote certeiro que so as najas sabem fazer. Afinal de contas, ela era passado. So me restava agora o adiante. Estava perto, e me aproximando do meu real destino. Já podia manter a calma.Pronto, findo o desafio do viaduto em cima da natureza, la estava o moinho. Era la. Bastava uma curva e tudo estaria terminado. Eu que antes havia relaxado os olhos, num alivio pelo desafio vencido, agora cerrava as vistas de novo e retomava o bate acelerado do coraçao. E pelo motivo mais real daquela tarde. Meu destino se avizinhava. Estava as portas. Era hoje que iria de encontro a ele, não importando o que ou quanto isso me custasse. Já tinha ido até ali. Não podia mais voltar atrás. Bem, havia-me até esquecido que tinha conduzido o carro a uma estradinha pequena que desembocava no topo de um barranco profundo. De la eu via o moinho perto do lago. Pronto. Havia chegado. Nada mais importava. Era lá que a mulher dos meus sonhos estava. Perto do moinho. Embaixo dele. Saí do carro e desci a pé atravessando a pontezinha de madeira que cruzava a vazante do lago em forma de barragem. Nem me assustei quando num desequilibrio ofegante, um toco de puro cedro se desprendeu e foi bater de encontro ao muro de concreto que cerceava o canal que dava direto no riozinho negro, bem abaixo da serra. Qual nada, eu queria era ver Alice. Era ali que haviamos combinado. E ela devia estar lá, já ansiosa por me ver. Nem me lembro se estava atrasado. E isso importava? Estava louco para cair em seus braços, beijar sua boca e fazer daquele fiapo de tarde um eterno tempo de paixáo.Pronto! Cheguei! Alice? Alice? Estou aqui meu amor, já cheguei. Voce não imagina o quanto corri e quantos perigos atravessei para estar com voce. Matei dragoes, derrubei cavaleiros. Lutei contra grandes correntezas. Mas pronto, estou aqui. Graças a Deus, são e salvo. E quem sabe para te salvar de algum perigo iminente, ou quem sabe das garras de uma fera ruidosa pronta pra te devorar e fazer meu momento de gozo insano ir por terra. Nestas alturas, eu sonhava! E percebia que era realidade meu maior encontro. Da altura dos meus 17 anos era a ocasiao mais arriscada de minha vida. Merecia destaque. Merecia ate um tom meio hollywodiano pra combinar com o sucesso de minha chegada. E enfrentando a tudo e a todos, enfim, eu estava ali. Pronto pra ver e tocar Alice. Mas, afinal onde estava Alice? Chamei, gritei e nem sinal dela. Queria surpreender-me com uma brincadeira como as que faziamos na infancia, quando nossos pais não sequer concebiam a idéia da nossa epopéia? Ou estaria dormindo. Adormeceu de tanto esperar-me?Era tudo silencio. Alice não estava. Eu não conseguia ouvir sua voz. Por mais que buscasse e rebuscasse um ruído sequer, eu não ouvia. Nessa busca desenfreada pela alma de Alice, havia-me surpreendido só a constataçao de que os sapos a beira do lago já entoavam sua cançao anunciando que o vespertino tinha ido embora. Agora era a hora do breu tomar conta da imensidao e como se fosse um velho caminhando com dificuldade carregando um bornal sujo e merejado de mofos, trazia dentro da sacola de pano a tristeza, o canto sofredor dos grilos, o voo razante dos curiangos cruzando minha cabeça como se quisessem nela aninhar-se e o pio doloroso da coruja, mais parecendo um sentimento de dor profunda que ela carrega na alma e quer externar a sua platéia medrosa do que propriamente um canto. Mas, e Alice? Onde estaria? Não podia ter se esquecido pois pelo fim da manha havíamos combinado tudo e ela garantiu-me aparecer. Alice? Pela ultima vez, Alice? Ela não me respondia. Na verdade, ela jamais me respondeu. Ela não foi ao nosso encontro marcado embaixo do moinho junto ao lago de aguas verdes. Havia acontecido alguma coisa? Não sei. Carregarei comigo esta vertente duvida para o resto de minha vida, pois aquela foi a ultima lembrança que guardei de Alice. Nunca mais a vi. E nem sei com que rosto deve estar agora, passados 30 anos desde memorial austero. Ficou para trás. Assim como o restante de minha vida e de seus personagens fiantes. Hoje, olhando o velho aero-willys saindo de minha casa e sendo rebocado para um ferro-velho qualquer, vejo que consumiu-me também a ferrugem no coraçao. Sou um homem sem lembranças. Nem meu pai tenho mais para recorrer em busca de esperança. Ou em busca de futuro. Não há o tal futuro. Conclui-me a inutilidade profunda encerrada no meu peito ao perceber que aquela tarde algoz, quando foi embora, carregou consigo e trancafiou a sete chaves, toda a minha coragem, todos os meus medos, e, por tabela, todos os meus sonhos!

" Conversa de boteco "

- Vamos embora Edgar?
-“Peraí” João Pedro, “vamo” pedir a saideira...
- Nossa, Edgar, você já pediu cinco saideiras...e até agora não levantou do lugar? Já percebeu que são quase três da manhã?
- Ainda tá cedo. Só mais uma, prometo ir embora depois dessa...agüenta só mais um pouquinho.
- Mas Edgar, só tem a gente no bar. O Garçom tá sentado e exausto. Nem consegue mais ficar de pé... Vamos embora Edgar!!!
- Então vai você João Pedro...eu fico! Tomo a saideira sozinho.
- Tudo bem...eu fico... mas vai ser só essa...
- Tudo bem! – e dirigindo-se pr’o garçom – Ô Mário! Traz a saideira aí.
- Mas “seu” Edgar, o senhor já me pediu cinco vezes a saideira. Tá na hora de fechar... tenho que ir trabalhar em outro lugar amanhã pela manhã. Amanhã nada! Daqui a pouco, depois das seis. A patroa já deve estar preocupada lá em casa. Não me atraso tanto assim.
- Muito bem, se você não me traz a saideira, vou eu mesmo apanhar...
- Espera “seu” Edgar, o senhor não tá se agüentando em pé. Tudo bem, eu trago a saideira. Vai ser a última. O senhor nem precisa pagar a conta hoje. Amanhã o senhor acerta.
- Não, quero pagar a conta hoje. Não gosto de ficar devendo ninguém.
- Pode deixar, amanhã o senhor paga. Sei que é bom pagador.
- Não! Só tomo a saideira se pagar a conta hoje. Do contrário, vocês vão Ter que me aturar até amanhecer.
- Não, não. Tudo bem....o senhor paga a conta! Deus me livre de demorar mais! Junto com a última eu trago a nota.- Assim tá melhor...Me traz a saideira aí.E depois de o garçom trazer a última bebida com a conta...
- Ihhh! Ma noticia, esqueci o dinheiro lá em casa.
- Tudo bem Edgar, eu pago. Mas vamos embora...olha só, a bebida continua no copo. Você não tomou nada.
- Eu não aceito que paguem nada prá mim. Tenho dinheiro.
- Nossa Edgar, eu tô mesmo perdendo a paciência com você. De mais a mais, como acha que ela vai reagir te vendo assim? Que vexame! Se algum dia ela pensou em reatar, depois de te ver desse jeito, já era meu “brother”. Já era!!!
- Você acha mesmo isso?
- Acho não, tenho certeza. Onde já se viu uma pessoa de alto gabarito como você se acabar dessa forma na mesa de um botequim.
- Você acha mesmo que ela pode pensar isso de mim?- Não duvido nada. Você precisa consertar esse seu jeito, quem sabe ela te aceite.
- Preciso consertar?
- Precisa refazer sua vida. Parar de beber dessa forma.
- Preciso mudar de vida?
- Com certeza..
- Você acha mesmo? Nossa, eu não tinha pensado nisso, viu, João Pedro.
- Se acho!!!!- Ô Mário, o João Pedro acha que eu devo mudar de vida. Você também concorda com isso?
- Ô se concordo “seu” Edgar. O senhor tem muito ainda pela frente. É um homem novo e cheio de vida. Não vale a pena ficar dessa maneira. Olha aqui sua conta. Foram 60 reais com os dez por cento.
- Sério...to tão acabado assim? - Sou eu quem paga Mário. Amanha o Edgar acerta comigo.
- Tá aqui seu João.
- É, prá você ver a que ponto chegou Edgar.
- Você acha mesmo Mário? Eu devo mudar de vida?
- Ô se acho, viu, “seu” Edgar... se acho!
- Puxa vida...a que ponto eu cheguei...
- Entao, a que ponto chegou, Edgar.
- to arrasado...acabado...não sou mais ninguém
- Ainda bem que sabe disso. Agora vamos embora. Ta aqui a conta, Mario. Pode ficar com o troco.
- Obrigado seu João.
- Agora vamos de vez, né Edgar? Ta na hora e eu também estou com sono.
- É! Eu preciso mudar. Preciso!!!- Vamos?- Eu preciso mudar, Mario...Preciso mudar, Joao Pedro. To arrasado. Amargurado. Só por isso, me dá uma saideira aí!!!...

Uma canção para Ana ( Un Chanson pour anna)

Sinto-me preso. A você?... Não sei. Mas à sua alma. Tento ser moderno, mas não consigo afastar a hipótese de que falar de outra pessoa me incomoda. Eu não queria, mas isso me persegue. Sofro, porém, calado. Queria dar um grito, mas estou mudo. Minha voz está cortada. Embargada. Mas meu coração está preso. A você?... Não sei. Mas à sua alma. Ouço sua voz pelo telefone. Ela me anima, me desperta, me encoraja, me ilude, me confunde e até me esvazia a tristeza de não ver-te. Mas ele tem que estar presente à nossa conversa. É inevitável que esteja. Afinal, vocês estão interligados, e isso eu não posso controlar. Odeio-me por não poder ser um deus e domar o tempo, fazê-lo parar, para só depois de elimina-lo de sua vida, deixar o relógio prosseguir. Por tudo isso, sinto-me preso. A você?...Não sei. Mas à sua alma.Ouço uma música. Até três. A minha vida é recheada de músicas. Estou irrequieto, até que a canção diz que assim como dois são um só, eu te guardo em mim. Fico mais doce com a linda voz do intérprete ao fundo. Deleito-me na melodia, e você me vem à mente e principalmente ao coração. Mas, apesar de ser uma canção sem fim, a música acaba. E assim, novamente, sinto-me preso. A você?...Não sei, mas à sua alma.Minha mente divaga, ao longe. Ela viaja, por você, pela sua vida. Ela quer entrar em você. Quer inundar-te, quer conhecer-te até a exaustão. Quer saber dos seus mais recônditos pensamentos. Seus anseios. Seus desejos. Mas não posso. Restrinjo-me apenas ao seu aroma no meu cérebro. Assim... imaginável. Estou preso. A você?...Não sei. Mas à sua alma. Há se eu pudesse ganhar-te! Se pudesse laçar o seu coração. Se pudesse aprisioná-lo. Se ao menos pudesse enlaçar-te.Mas não posso. Não consigo. Bloqueia-me apenas a percepção de saber que o seu coração ainda é dele. É pra ele. É fútil lutar. É vã a perceja. Só há a conformação. E a esperança. Esta não morre. Fica. Espera. E está presa. Ao seu coração?...Não. Esta presa à sua alma.Esta é a prisão dos incautos. A prisão dos que fazem do ofício do amor o seu passatempo.A prisão dos que sonham. A prisão dos que mendigam uma parte do seu sentimento. Um pedacinho do seu desejo. A prisão dos que pelejam, mas perdem. Eu estou só. E agora, estou apenas defronte ao computador, meu companheiro de mágoas. Meu ouvinte de amargor. Debruço-me cansado. Arrasado pelo desejo. Quero embora. Meus ombros pesam. Meu coração palpita. E depois de ensaiar diversas idas, sento-me e recomeço a saga de novamente pensar em vocês, no plural, de sofrer um pouco nesta odisséia às vezes interminável.Por tudo isso, Ana é que sinto-me preso.A você?...Talvez. Mas quem sabe esta prisão sirva para mostrar-me que nem tudo é apalpável. Nem tudo está ali, a nossa vista. Ao alcance de nossas mãos.E quem sabe o dia que ele não estiver entre nós, eu possa sentir-me preso. Mas dessa vez, à sua boca!P.S.: Neste momento o arco-íris no céu é lindo e transforma-se em dois, após uma chuva fina que caiu na cidade, nesta tarde, misturada com um sol de janeiro. Ele parece ter vindo exatamente da direção de sua casa, portanto, quem sabe não teria trazido alguma mensagem sua?Acho que vou lá fora perguntá-lo. Beijos.

" Breve dissertação do sorriso "

" por que os sorrisos não falam?...deveriam falar...as vezes entendemos mais um sorriso do que os próprios sons extraídos pelos cordões vocálicos de nossa boca. Acho as vezes mais fácil sorrir do que falar com o ser humano. Um sorriso diz muito. Diz até quando estamos tristes, e um sorriso facilita a comunicação quando não nos anseia o desejo da fala. Pense bem, um sorriso estonteante, significa que estamos irradiando felicidade e ofegantemente alegres. Por outro lado, um sorriso amarelo, significa que estamos sem graça, envergonhados, diminuídos, opacos. Ainda existe o sorriso cínico quando definitivamente, queremos ironizar a atitude de outrem. Um sorriso de canto de boca pode indicar que não queremos muita conversa. Um sorriso pequeno acompanhado de uma flor nos lábios, identifica uma ação mal-intencionada, mas que de mal mesmo não tem nada. Um sorriso largo diz o que realmente queremos, ainda mais se ele for de perfil. É um sorriso erótico e fala por si.Enfim, a linguagem do sorriso é a mais ampla existente. De fato, o sorriso é a mais pura das expressões, por que consegue identificar as emoções, até mesmo a mais profunda. A triste.O sorriso, nosso companheiro do dia a dia, nos acompanha até pela morte, pois muitos comparecentes aos envoltos pelas velas, deitados na urna eterna, dizem que ‘estamos mortos, mas como se sorrindo’.Breve dissertação foi essa do sorriso, mas pare, pense. Que tal dar um sorriso hoje?”