quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Encontro Marcado

...A paisagem passava, rapidamente, e a estrada seguia como se não quisesse ser alcançada pelo Aero-willis cor verde metalico que eu conduzia. Era tardezinha de outono, daquelas que se fecham com um crepusculo em tom pastel, como que dando um ar de tristeza ao fim do dia. Havia brisa. Fininha, pequena, mas havia. A medida que a ponte se aproximava, meu coraçao palpitava descompassadamente. Afinal, era depois daquela ponte esbranquiçada, que mais parecia uma serpente em ponto de ataque, que meu destino estava espreitado. O desespero era fato. As pupilas dos olhos estavam dilatadas, ora pela atençao na estrada, ora por querer chegar antes de mim ao meu destino. E abriam-se como se quisessem enxergar o que havia depois da curva. No volante do carro já escorria um suor de minhas maos em quantidade tal que, vez em quando era necessario abrir o porta-luvas de alumino prata com desenhos goticos daquele modelo anos 60. Para ser preciso, ele era ano 66, comprado por meu pai de um senhor que havia sido seu único dono, e que, por desgosto da esposa, tinha decidido desfazer-se daquele belo exemplar com pneus de faixa branca e farois amarelados. Lindo! E Imponente! Era do porta-luvas daquele veiculo, agora conduzido por mim, depois de aprender a guia-lo as escondidas, que eu apanhava uma flanela de algodao já reservada para estas ocasioes de extrema ansiosidade. E como não podia largar o volante branco com buzina em aluminio, eu esfregava o pano vermelho em minhas maos, antes que elas escorregassem e por fim, como num corte bruto na pelicula de um filme, meu desejo fosse rasgado antes do apice, antes do epilogo esperado.Enquanto tudo isso acontecia, simultaneamente, a ponte acabava. Eram uns 130 metros de vao, mas que na verdade, pareciam estender-se por quilometros a minha frente. Na mente, eu esconjurava as muretas em falsete do viaduto branco, ou da serpente venenosa, como havia assumido a forma pra mim. Parecia uma pugna entre minhas maos e ela. Eu segurava firme. Nem sei onde pus a flanela que limpava a mao. Os olhos permaneciam fixos, na direçao. Não podia vacilar justo agora. Estava quase chegando.Estava de pé embaixo, acelerando. Diante de algum imprevisto, aliviei. Recobrei a consciencia e o juizo. Enfim, tinha matado a serpente. Ela não saltou em cima de mim num bote certeiro que so as najas sabem fazer. Afinal de contas, ela era passado. So me restava agora o adiante. Estava perto, e me aproximando do meu real destino. Já podia manter a calma.Pronto, findo o desafio do viaduto em cima da natureza, la estava o moinho. Era la. Bastava uma curva e tudo estaria terminado. Eu que antes havia relaxado os olhos, num alivio pelo desafio vencido, agora cerrava as vistas de novo e retomava o bate acelerado do coraçao. E pelo motivo mais real daquela tarde. Meu destino se avizinhava. Estava as portas. Era hoje que iria de encontro a ele, não importando o que ou quanto isso me custasse. Já tinha ido até ali. Não podia mais voltar atrás. Bem, havia-me até esquecido que tinha conduzido o carro a uma estradinha pequena que desembocava no topo de um barranco profundo. De la eu via o moinho perto do lago. Pronto. Havia chegado. Nada mais importava. Era lá que a mulher dos meus sonhos estava. Perto do moinho. Embaixo dele. Saí do carro e desci a pé atravessando a pontezinha de madeira que cruzava a vazante do lago em forma de barragem. Nem me assustei quando num desequilibrio ofegante, um toco de puro cedro se desprendeu e foi bater de encontro ao muro de concreto que cerceava o canal que dava direto no riozinho negro, bem abaixo da serra. Qual nada, eu queria era ver Alice. Era ali que haviamos combinado. E ela devia estar lá, já ansiosa por me ver. Nem me lembro se estava atrasado. E isso importava? Estava louco para cair em seus braços, beijar sua boca e fazer daquele fiapo de tarde um eterno tempo de paixáo.Pronto! Cheguei! Alice? Alice? Estou aqui meu amor, já cheguei. Voce não imagina o quanto corri e quantos perigos atravessei para estar com voce. Matei dragoes, derrubei cavaleiros. Lutei contra grandes correntezas. Mas pronto, estou aqui. Graças a Deus, são e salvo. E quem sabe para te salvar de algum perigo iminente, ou quem sabe das garras de uma fera ruidosa pronta pra te devorar e fazer meu momento de gozo insano ir por terra. Nestas alturas, eu sonhava! E percebia que era realidade meu maior encontro. Da altura dos meus 17 anos era a ocasiao mais arriscada de minha vida. Merecia destaque. Merecia ate um tom meio hollywodiano pra combinar com o sucesso de minha chegada. E enfrentando a tudo e a todos, enfim, eu estava ali. Pronto pra ver e tocar Alice. Mas, afinal onde estava Alice? Chamei, gritei e nem sinal dela. Queria surpreender-me com uma brincadeira como as que faziamos na infancia, quando nossos pais não sequer concebiam a idéia da nossa epopéia? Ou estaria dormindo. Adormeceu de tanto esperar-me?Era tudo silencio. Alice não estava. Eu não conseguia ouvir sua voz. Por mais que buscasse e rebuscasse um ruído sequer, eu não ouvia. Nessa busca desenfreada pela alma de Alice, havia-me surpreendido só a constataçao de que os sapos a beira do lago já entoavam sua cançao anunciando que o vespertino tinha ido embora. Agora era a hora do breu tomar conta da imensidao e como se fosse um velho caminhando com dificuldade carregando um bornal sujo e merejado de mofos, trazia dentro da sacola de pano a tristeza, o canto sofredor dos grilos, o voo razante dos curiangos cruzando minha cabeça como se quisessem nela aninhar-se e o pio doloroso da coruja, mais parecendo um sentimento de dor profunda que ela carrega na alma e quer externar a sua platéia medrosa do que propriamente um canto. Mas, e Alice? Onde estaria? Não podia ter se esquecido pois pelo fim da manha havíamos combinado tudo e ela garantiu-me aparecer. Alice? Pela ultima vez, Alice? Ela não me respondia. Na verdade, ela jamais me respondeu. Ela não foi ao nosso encontro marcado embaixo do moinho junto ao lago de aguas verdes. Havia acontecido alguma coisa? Não sei. Carregarei comigo esta vertente duvida para o resto de minha vida, pois aquela foi a ultima lembrança que guardei de Alice. Nunca mais a vi. E nem sei com que rosto deve estar agora, passados 30 anos desde memorial austero. Ficou para trás. Assim como o restante de minha vida e de seus personagens fiantes. Hoje, olhando o velho aero-willys saindo de minha casa e sendo rebocado para um ferro-velho qualquer, vejo que consumiu-me também a ferrugem no coraçao. Sou um homem sem lembranças. Nem meu pai tenho mais para recorrer em busca de esperança. Ou em busca de futuro. Não há o tal futuro. Conclui-me a inutilidade profunda encerrada no meu peito ao perceber que aquela tarde algoz, quando foi embora, carregou consigo e trancafiou a sete chaves, toda a minha coragem, todos os meus medos, e, por tabela, todos os meus sonhos!

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