quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

A trilha dos trilhos dos sonhos


Uma brisa matinal passeava lentamente sobre o lago azul celeste que havia atrás da casa de adobe próximo a estaçãozinha de Pires. Era uma casa abandonada. Não tinha sido assim no passado. Um dia aquilo tudo ali já tinha sido movimentado. Em algum tempo um borbulhar de pessoas trançavam aqueles trilhos de um lado para outro como se fosse um ninho de formigas. Homens trabalhando, mulheres falando da vida alheia e crianças recostadas nas muretas das casas brincavam de pique-esconde ou de porta bandeira. Tudo ali fervia de vida e de poder de espírito. Mas hoje, estávamos diante de uma velha casa recostada com dormentes podres em suas paredes tentando deixar existir o que parecia querer avidamente desaparecer. Mas, olhando copiosamente a centenária construída de barro e cal, nós refletíamos saudosamente e seguíamos em frente no balanço e nos solavancos dos vagões. Como se fosse um compasso de música aquele balançar parecia nos ninar naquela tarde gostosa de setembro. E olhávamos bem atentos à locomotiva lá na frente fazendo a curva primeiro do que o compartimento onde estávamos. A música tocava, o trem serpenteava e os desencontros dos vagões soava como uma valsa profunda que nos confundia e fazia-nos chorar, sorrir e pular de alegria ao mesmo tempo. O sol dava o ar da graça naquele crepúsculo e assim lançava seus raios fazendo o céu ter uma face multicor. Um misto de azul e vermelho com um amarelo refletido bem ao centro, por baixo, como se fosse um colchão d`água recostado na colina verde que refletia a sombra das densas nuvens no fim do dia.E assim íamos nós de encontro à nossa juventude. O barulho permanecia como música nos ouvidos. Lá bem ao longe alguns bois pastavam intactos, incólumes, intocáveis. Pareciam estátuas brancas do tempo. Fixos. Imóveis. Só se fizéssemos muito esforço a nossa visão conseguia captar um imponente garrote de chifres pontiagudos abanando o grosso rabo para se livrar de alguma mosca que o incomodava no lombo. Mas tinha que se cerrar demais os olhos para enxergar isso. E nós não queríamos enxergar nada que não fosse o vulto da nossa meninice.Era assim...O balanço seguia...Te-dé, te-dé, te-dé!!!Foooooooooooooooommmmmmmmmmmm!!!!Nossa!!!! A locomotiva buzinou como se estivesse dando um grito de desespero na frente.Será que havia passado por cima de algum animal distraído no meio dos trilhos? Isso era comum nos tempos de criança. Agora, queríamos ser de novo como na época das travessuras. Alvoroçamos como guris inquietos e curiosos. Mas, qual nada, era só um bando de reses que haviam se descambado desfiladeiro abaixo perto da ponte sobre o riachinho, amedrontadas ao serem perseguidas pela serpente gigante com cabeça vermelha que se avizinhava em cima das duas linhas pretas e metal-brilhantes que haviam se estabelecido na “ruralidade”.E o balanço seguia.Junto àquele balanço a cabeça agora emaranhava minha vida.Lembranças tênues enchiam a massa que cobria o invólucro osseóide que me pertencia, e que preenchia meu ser. Naquelas recordações, imagens do meu pai vieram . Sua sombra estava como que ali caminhando ao meu lado. Na verdade, era mesmo do lado do trem. Andando, bem devagar e com a cabeça bem erguida, olhando o horizonte, como era seu costume fazer. Um das mãos na cintura, e a outra apontando a serra verde bem depois do campo de flores na frente do curral. O dorso nu, e uma camisa de flanela jogada nos ombros, reclamando o calor abrasador que o astro-rei lançava na atmosfera parda. Sim....ali estava ele, como se quisesse dizer que aquele campo era o mais belo dos campos que já vira. Era como se eu o ouvisse dizer que ao alcançar sua velhice queria viver num lugar assim, bem defronte ao lago. Ele havia repetido isso muitas vezes na sua trajetória.É!!! Era ele, eu podia quase ver. Eu podia praticamente enxergar seus dois metros de altura e sua silhueta imponente adquirida desde os tempos em que era um exímio jogador de futebol. Ele acenava, e se despedia como se fosse viajando também pelo tempo. Eu estava mesmo vendo. E assim como a lembrança veio, assim se foi. Era como se caminhasse bem devagarinho em direção ao nada. Desapareceu, ao embrenhar-se com as nuvens e com o horizonte que passava, que caminhava de encontro ao nosso andante.E o trem seguia.A cidade já mostrava seus contornos. Alguns casebres já se aventuravam em aparecer, como se timidamente quisessem nos dar boas vindas. Afinal, estávamos chegando. A locomotiva diminuía seu compasso. A música chegava ao término. Ficava mais lenta.Tudo ficava mais triste. Os amontoados de residências e pessoas no crescente nos avisavam que o passado tinha ficado pra trás. Agora era mesmo passado. Só lembrança. Mas que bom, que ótimo que existia em nós um passado, um presente e quem sabe, um futuro.Acabou-se a música, acabou-se a viagem.Mas não acabou a esperança. E a vontade de dar prosseguimento a alma que estranhamente insiste em ir adiante, como se o futuro fosse eterno, e como se as pessoas que fazem parte da história jamais morressem. O trem parou. Era Montes Claros. Chegamos. Acabou-se a odisséia.Descemos. Agora era hora de voltar ao mundo, à realidade grotesca, feita de carne e osso, mas com mais osso que carne. Foi-se embora o trem. Levou nossa vida. Levou o passado. Levou a memória. Levou as lembranças. Levou o horizonte. Levou a nostalgia. Levou a música.Mas nos deixou alegres, com a alma revigorada e pronta pra mostrar ao mundo que ainda somos gente, existimos. E que temos o que contar aos nosso filhos e aos nossos netos.Adeus, trenzinho! Leva tudo mesmo. Mas não esquece de, com o som do seu apito e seu serpentear pelos trilhos, avisar a quem atravessar o seu destino que a vida não é só isso. Ela é muito mais, porque permite a cada ser humano sonhar.E é de sonhos que se constrói o mundo. É de sonhos que vivemos lembrando o passado, e é de sonhos que levantaremos as paredes do futuro.Adeus meu trenzinho! À Deus, trenzinho!...

Nenhum comentário: